Arquivo da tag: contos

Saiu pra comprar cigarros…

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Saiu pra comprar cigarros. Se a ideia era não voltar, eu não sei. Só sei que voltou. Mas voltou sem cigarros e com o olhar abismado que nunca havia visto antes. Ela entrou na casa com aquele olhar, sem cigarros, e caminhou até o escritório.

No instante seguinte, pegou alguns papéis e uma caneta e começou a escrever. Parada diante dela, pensando se perguntava sobre o que fazer para o almoço, ela me pediu que saísse e fechasse a porta por fora. Foi o que fiz. Decidi que teríamos frango ensopado com polenta.”

Assim começa o livro “Saiu pra comprar cigarros”, coletânea com 13 contos, que poderiam ser chamados de experimentações pelas brincadeiras com os elementos narrativos de ficção. Como, por exemplo, no conto “– Você sabe por que está aqui?” que é escrito (desde o título) todo em diálogo, sem descrições de quem são os dois personagens, nem de onde eles estão. Através do diálogo, vamos entendendo o conflito e descobrindo por que eles estão ali.

Já o conto “À porta” poderia ser chamado de “monólogo à porta”, pois se trata de uma conversa íntima da personagem com ela mesma enquanto espera a hora de tocar a campainha para um encontro marcado. O conto “O interruptor” é uma experiência de histórias paralelas e cruzadas entre os personagens, com a diagramação também paralela: duas histórias na mesma página.

Outra das narrativas é em forma de um roteiro para rádio: um podcast, também com os ouvintes falando à locutora e com uma trama comum entre todos eles. “O buquê”, “Quatro noites e muitas outras” e “O Mito dos Zauês” contam histórias cujas protagonistas são mulheres que ultrapassam limites de padrões convencionais e surpreendem em suas ações. Estas histórias são narradas com jogos temporais de escrita. O jogo entre tempo e espaço também está presente no conto breve “Vida em branco”. Duas das narrativas são voltadas para finais de relacionamentos: “Incompatibilidade” e “Débito e crédito” e, assim como a trama, as histórias são sínteses: curtas e que resumem uma história maior que não precisou ser contada.

“O autor” é uma história de humor que brinca justamente com a condição de autor como autoridade sobre o que escreve.

E, por fim, “André liberto” e “Aquilo que só criança vê” dão um tom mais suave à coletânea, pois são histórias de crianças descobrindo coisas que ainda não conhecem.

Mesmo que as histórias tenham personagens e conflitos totalmente diferentes, todas elas têm em comum a delicadeza do olhar e a visão sobre coisas jamais “vistas” (ou pensadas) por aqueles personagens; o momento da percepção de algo e a reação a esta percepção. Reação que talvez fuja do pre-visível – tanto do personagem quanto do leitor.

A aurora sintetiza o livro como a reunião de 13 contos em que os personagens, muito diferentes uns dos outros, acabam pegando desvios inusitados e embarcando em mundos e tempos bem diferentes daqueles previstos em seus cotidianos. Diante de seus erros e acertos, nós, leitores, vamos pensando a vida de outros modos, sob outros pontos de vista. Junto com esses personagens, tomamos nossos próprios desvios e seguimos caminhos outros, abertos por detalhes novos, sentimentos simples, transitoriedades da vida.

“Saiu pra comprar cigarros” está disponível em: https://www.clubedeautores.com.br/ptbr/book/269627–

Você pode seguir a autora seguir no Facebook em https://www.facebook.com/ficcionarius/

ou pelo email: naramarqs@hotmail.com

O Pênalti (via Cotidiano e Outras Drogas)

Mais um domingo animado no campeonato de Ramos. O Flamenguinho da Aracati enfrentaria a Doutor Noguchi. Embora não fosse tão grandioso quanto o “Xepão”, também era um clássico do torneio.

Muitas caras conhecidas em ambos os times. Chamou a atenção o novo reforço que Diplomata, passista da Imperatriz e técnico nas horas vagas, assimilou para o time: Montanha.

Vinícius era um garoto incomum para sua idade. Aos 16 anos, tinha quase 100 quilos e era mais forte do que um touro nelore e já ajudava empurrando os carros alegóricos da Imperatriz. Seu apelido, “Montanha”, por pouco não era literal. Entretanto, o negócio do galalau não era futebol. Ele chamava a bola por Vossa Excelência, num tratamento desprovido de intimidade.

Diplomata, mesmo assim, inscreveu Montanha como camisa 12, goleiro reserva. Era muito raro ter goleiro reserva em Ramos. Se já era difícil encontrar um titular, imagine banco. Ninguém entendeu o que o treinador malemolente queria. Ele apenas respondia: “Deixa que eu sei o que estou fazendo.”

O trilador de apito da contenda seria “Figurante”. Arnaldo Romualdo Coelho, formado em arbitragem, que apitava jogos do campeonato carioca – da Série C – e ainda por cima aparecia como ator em novelas da Globo, fazendo sempre pontas menores do que guimba de cigarro, daí o apelido. Se houvesse arbitragem “FIFA” em Ramos, Figurante seria o mais importante.

Continue Lendo via Cotidiano e Outras Drogas

Ontem, Hoje, Sempre (via Cotidiano e Outras Drogas)

Todo ser humano tem preconceitos. Corrigindo, pré-conceitos. Contra uma, algumas, várias ou todas as coisas. Depende do nível de evolução de cada um evitar que estes pré-conceitos percam o hífen e a vergonha. Às vezes, pequenos detalhes fazem com que isso ocorra.

Quando era pequeno, tive broncopneumonia. Quase morri. Deste episódio que me levou à geladeira hospitalar, guardo duas lembranças: A de que odeio comida de hospital, principalmente quando misturam arroz e macarrão; e de uma grande pessoa, que me ajudou demais.

Ele era cabelereiro, grande amigo da família. Vítima de poliomielite na infância, andava com suas muletas, sem perder a altivez. Virou meu tio de consideração. E se dispôs em vários dias a zelar por mim no hospital, contando estórias para passar o tempo, uma delas a do “menino de ouro”.

Continue Lendo via Cotidiano e Outras Drogas

O Clássico ( via Cotidiano e Outras Drogas)

Para os adolescentes de Ramos, nada era mais importante do que o campeonato de futebol entre as ruas. A Libertadores leopoldinense do asfalto, que atraía olheiros do Olaria, Bonsucesso, Madureira entre outros times pequenos e charmosos da cidade, mexia com o bairro e todos os seus habitantes.

Os jogos não aconteciam em campinhos, mas nas ruas, que eram fechadas para partidas entre os times, todos devidamente uniformizados. Quatorze ruas disputavam um torneio dos mais competitivos da região, com regras, rivalidades e premiações.

Só podiam jogar aqueles que tinham até 18 anos, embora de vez em quando aparecesse alguém que jurava ter nascido em 29 de fevereiro e fazia a contagem de idade de 4 em 4 anos. Mesmo assim, poucos casos de gato eram descobertos.

As traves, especialmente para esta ocasião, eram idênticas às traves da várzea, substituindo as tradicionais balizas de chinelo para evitar – ou melhor, diminuir – a polêmica.

Além disso, cada rua virava um alçapão particular. A “altitude” de uma delas, com sua ladeira que cansava o adversário no segundo tempo, quando ele invariavelmente atacava subindo – a “mística” do sorteio da moedinha, nunca descoberta.

O piso de paralelepípedos de outra, que se tornava um tormento para os adversários, tal a quantidade de desvios que a bola tomava antes de chegar ao gol; o asfalto abrasivo e chapiscado de outra, que deixava os pés com bolha de sangue, e por aí vai.

É importante ressaltar que, neste campeonato, poucos jogavam de tênis. O lance era o futebol moleque, pé descalço, toco y me voy. Tênis, assim como futebol-arte, escanteio curto, amor platônico e coração aberto, era coisa de menino criado com avó, que soltava pipa no ventilador e jogava bola de gude no carpete.

Continue Lendo via Cotidiano e Outras Drogas

Ziriguidópolis (via Cotidiano e Outras Drogas)

Este texto é uma obra de ficção baseada em fatos surreais. Qualquer semelhança é mera coincidência.

O Atlético Ziriguidópolis terminou o ano passado como quinto colocado no campeonato de Roraima. Quando todos os atletas já estavam de férias, chegou a notícia que o campeão e os outros times mais bem colocados tinham desistido de participar da Taça São Paulo, e o“Ziriga” foi convidado. O presidente aceitou o convite, e o time teria de se apresentar imediatamente.

Agripino Augusto da Silva Santos, o Fuinha, era o presidente do Clube Atlético Ziriguidópolis. Um dos fundadores do time, que nasceu num bairro da periferia da Boa Vista, através de imigrantes de Minas Gerais apaixonados por samba, em 1971.

O nome Atlético veio por causa do Galo campeão brasileiro; as cores azul e verde, por causa de Cruzeiro e América; o nome Ziriguidópolis é em homenagem a Sargentelli, e o mascote, uma mulata passista, também remete ao samba.

Depois do convite inesperado, Fuinha chamou seu treinador e braço-direito, Melão, para traçarem os planos para o torneio. Cláudio da Silva foi apelidado assim porque tem a boca torta, lembrando a personagem de Don Lázaro Venturini em uma novela global dos anos 80 – “Eu prefiro Melão”, dizia Lima Duarte, vestindo o papel.

Continue Lendo via Cotidiano e Outras Drogas