Da janela da alma vem a luz que me acalma

Texto e foto de Valéria del Cueto
Tudo igual. Constato passeando pelo bairro, no caminho entre a padaria e a Pedra do Leme, onde vejo a bandeira tremulando a meio mastro. Mas diferente.
Vinha procurando um assunto quando passei embaixo da janela do meu antigo apartamento, a “casinha” (o novo ainda não tem nome), no primeiro andar. Aquela onde, quando fui para lá, há mais de dez anos, achei ideal para receber serenatas.
É, sou do tempo e de lugares de serenatas na janela. Para desespero do meu pai, milico ainda, que precisava acordar cedo para trabalhar. Como somos duas filhas, a Gisela e eu, as homenagens românticas eram múltiplas, muito mais pra Gi do que pra mim.
Em Bela Vista, naquele tempo Mato Grosso, serenata era assunto muito sério e recorrente, principalmente nas férias, quando a garotada baixava na princesinha do Apa. Tinha que agradecer, abrir a janela…
A ordem dos fatores alterava todo o produto. Era uma romaria crescente por que quem recebia a serenata costumava se juntar a turma para ir cantar noutra janela, depois noutra.
Nunca fui de ir atrás das violas enfeitiçadas. Primeiro, por que meu pai não deixava. Segundo, por que nossa casa sempre ficava por último, mesmo que fosse visitada noutra altura da ronda musical. Afinal, eu namorava Preto, o violeiro – mor, peça quase fundamental para o sucesso da empreitada (sem tirar os méritos dos dedilhados e doces palavras do Vanderley, do Gão do Bermudes e, por que não incluí-lo, pelo esforço frequente, o Tadeu Palmieri). Eu não me incomodava mas, meu pai, sim. Não foi nem uma nem duas vezes que recebeu as românticas caravanas ameaçando premiá-las com panelas cheias d’água. Isso, lá pela terceira ou quarta serenata. No meio da semana!
Quase infelizmente no prédio da Gustavo Sampaio nunca recebi uma serenata. Também nunca pedi, por achava que o mimo deveria vir de forma natural, sem forçar a barra.
A vida é assim, não nos dá aquilo que pedimos. Porém… De vez em quando, nos chega um presente muito melhor. Acontece que a janela do meu quarto era só um pouco acima do nível da rua. Não precisava de gritos para que eu ouvisse se alguém me chamasse.
E, assim, nos últimos 10 anos, passou a ser feito. Todos os domingos e, algumas vezes, durante a semana. “Maria Valéeeeeria, Maria Valéeeeeria…” Aos domingos, depois da missa, um pequeno desfio de caminho, permitia que minha avó me desse o melhor despertar do mundo, o mesmo que tive durante os anos que morei com ela, (naquele tempo acrescido de um copão de Nescau morninho).
Não importava meu estado matinal ou o peso da janela de guilhotina que me fazia me xingar mentalmente, temendo dar um mau jeito nas costas levantando o janelão. Como a cama ficava colada, a segunda dificuldade era encontrar os óculos pra poder dar um tchauzinho pra minha amada e combinar o almoço de domingo. Simples assim.
Tive a minha serenata por uns de dez anos. Até precisar mudar de apartamento, no último mês de maio. Mudei pra perto, para a rua de trás e entrei no caminho natural de dona Ena para a igreja. Só que… Fui morar no segundo andar. Muito mais difícil de ouvir meu mantra de bom dia. Passei a colocar o despertador e, tal como Januária, esperar que a maré cheia do meu mar de amor me alcançasse. Ficou mais difícil e por contingências da vida, o costume não firmou.
Hoje, na minha janela, sou apenas Carolina, a que não viu o tempo passar. E, dizendo mentalmente nosso “segredo”, junto com ele prometo: nos meus olhos, agora, fundos, não vou guardar a dor. Uma rosa pode morrer, a festa acabar, um barco querer partir. Nossa história não merece o sofrer, amada. Não faz assim quem foi só carinho, amor, tanta alegria! É Sem Fim…
*Valéria del Cueto, neta de Dona Ena, que sempre vai viver no SEM FIM. delcueto.cia@gmail.com

1 pensou em “Da janela da alma vem a luz que me acalma

  1. norma7

    O que eu acho? Acho sensacional ser feliz e sabê-lo.
    E esse ‘povo’ do Leme é especial, diferenciado, de nicho:
    Lembro-me de uma amiga de uma amiga, que quando vinha a praia em Ipa, sempre arranja um jeitinho de marcar o almoço no meio do caminho (Copa) e confessava: “Estou louca para voltar para casa!” (Leme), como se estivesse a 15 dias de distância de viagem em lombo de burro. Quando dávamos conta já tínhamos feito quase todo o trajeto de seu retorno com ela… a pé!
    Só ‘local’ entende as referências e os simbolismos de uma bandeira não ser só a bandeira do Forte. E quase um ‘cobertor de segurança’ no cotidiano… Um arauto na torre avisando: São X horas e tudo está bem nos ‘Estamos Unidos do Leme’!
    Bom domingo e Boa Sorte, Nac♥

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