Deu xabu

Texto e fotos de Valéria del Cueto

Chegar a praia e descobrir que esqueceu a canga, base para montar seu acampamento solar é quase igual a esquecer em casa o passaporte e só descobrir no aeroporto, na hora de embarcar.

Como querer sacar dinheiro no banco sem o cartão eletrônico. Pular de paraquedas sem o meio de transporte adequado. Participar de prova de hipismo sem o animal que dá nome ao esporte. Praticar tiro ao alvo, mas faltar a arma, de fogo ou branca.

Um retorno à base era impensável. O tempo urgia, o sol chamava e a preguiça rugia. Transformou o vestidinho numa pequena ilha evasê e ali se aboletou, largando na areia a bolsa e dela sacando o caderninho e a caneta. Era isso ou adeus à crônica.

A ordem era desordenar a rotina e antecipar o material. A periodicidade seria alterada por conta do feriado. De dominical, esta seria uma edição sabadal, sabadense e sabática.

Explique esses pequenos detalhes para a sua inspiração, caro editor. Por que para ela, a musa que a guiava, hoje não era dia de pensar, sugerir ou intervir.

O dia seria amanhã. Hoje com amanhã não orna. Entre outras razões por motivos bancários, vejam só que prosaico. Inspiração e banco não se entendem, e, raramente combinam. Diante das circunstâncias até ela foi obrigada a concordar com a justa reclamação do setor bancário. Era o dia dele.

A inspiração não achou muita graça por levar a culpa involuntária destes acontecimentos. Afinal, que responsabilidade tinha se sexta feira seria feriado? Como poderia aceitar de bom grado ser requisitada, recrutada e intimada a comparecer fora do dia semanal contratado e, mais importante e decisivo, em pleno 31 de outubro, Dia das Bruxas no hemisfério norte e, portanto, para os não iniciados, no mundo inteiro? É muita audácia.

Audácia e falta de noção. Do perigo, inclusive. E não se engane. Não é por estar na Ponta do Leme, em pleno Rio de Janeiro, numa tarde ensolarada de primavera, ouvindo as ondas quebrarem tão preguiçosas quanto ela, sem seu metro e meio quadrado de canga, que é possível sentir-se imune aos perigos abaixo mencionados. Bruxaria, magia, energia.

Mesmo as melhores e mais bem intencionadas feitiçarias devem ser usadas de forma parcimoniosa seguindo os devidos rituais.

Isso se aprende em Florianópolis, Santa Cataria, que, não por acaso, tem o codinome de Ilha da Magia, e é um entre outros pontos de contato entre os mundos paralelos da realidade e da mágica.

Há que respeitar e reverenciar os desígnios caprichosos da inspiração argumentava a pobre cronista procurando “pescar” um bom assunto.

Quem já perdeu a musa sabe disso. E se ela exige o sacrifício do conforto espacial, que assim o seja.A canga, pendurada abandonada solitária na janela do apartamento, fica fora de cena e o vestido assume o papel de micro ilha nas areias quentes da praia.

A inspiração bondosa e companheira, finalmente concede o sopro de sua graça. Mas, por seus estimados e valorizados serviços, cobra um alto preço da cronista necessitada de seus préstimos.

Por reverência, ao imobiliza-se no exíguo espaço literário, ciente de que qualquer movimento pode romper o fio que a liga com a musa, deixa as costas imobilizadas pelo tempo em que redige, provocando uma entorse que durará todo o feriado.

Deu xabu, mas a crônica saiu. O relaxante muscular que virá mais tarde é um preço justo pela inestimável contribuição.

*Valéria del Cueto é jornalista, cineasta e gestora de carnaval. Esta crônica faz parte da série “Ponta do Leme” do SEM FIM. delcueto.cia@gmail.com

1 pensou em “Deu xabu

  1. norma7

    À
    Valéria:

    Venha como estiver trajada… A elegância da tua “Bic” é ímpar!
    Boa Sorte, Norma

    ++++
    Abçs Beto

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