O Sistema de Agricultura Tradicional do Rio Negro revela uma sociedade de troca, multiétinica e multilingüística e pode se tornar mais um bem protegido pelo Iphan. Ainda hoje no Brasil, um sistema agrícola é capaz de determinar a organização social de etnias e permite, inclusive, um mapeamento das línguas e costumes. Em linhas gerais, esse é o Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro, de um povo indígena que considera as mandiocas como seres com atributos semelhantes aos humanos como sentimentos, hierarquia, sociabilidade, coletividade e individualidade. A mandioca possui também a capacidade de se comunicar entre si e com as mulheres, que são as donas das roças. Todo esse processo será avaliado pelo Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural, reunido nos próximos dias 4 e 5 de novembro no Rio de Janeiro. A proposta de registro como Patrimônio Cultural do Brasil, encaminhada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan, foi apresentada pela Associação das Comunidades Indígenas do Médio Rio Negro – ACIMRN, pela Associação Indígena de Barcelos – ASIBA e pela Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro – FOIRN.
O Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro é entendido como um conjunto formado por elementos interdependentes, como as plantas cultivadas, os espaços, as redes sociais, a cultura material, os sistemas alimentares, os saberes, as normas e os direitos. O cultivo da mandioca brava (manihot esculenta) é a base desse sistema que reúne os mais de 22 povos indígenas que vivem ao longo do Rio Negro, em um território que abrange os municípios de Barcelos, Santa Isabel do Rio Negro e São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, até a fronteira do Brasil com a Colômbia e a Venezuela. De acordo com o Departamento de Patrimônio Imaterial – DPI/Iphan, o Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro, onde o homem prepara a roça e a mulher trabalha na colheita, organiza um conjunto de saberes e modos de fazer enraizados no cotidiano dos povos indígenas da região noroeste do Amazonas. Esse bem cultural apresenta contexto multiétnico e multilingüístico, ou seja, os grupos indígenas compartilham formas de transmissão e circulação de saberes, práticas, serviços ambientais e produtos, de forma constante entre as etnias que o vivenciam.
O Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro. A bacia do rio Negro é formada por um mosaico de paisagens naturais. Floresta de terra firme, campina, vegetação de igapó e chavascal formam uma diversidade de terrenos que influencia a vida da população. Os povos indígenas detêm o conhecimento sobre o manejo florestal, os locais apropriados para cultivar, coletar, pescar e caçar e o Sistema Agrícola do Rio Negro é estratégico para lidar com as limitações e potencialidades do ecossistema da região, sem degradá-lo, onde é derrubada uma área de floresta primária ou capoeira alta, que é deixada para secar e, depois, é queimada. Nessas clareiras são plantadas roças por um período de dois a três anos, gradualmente abandonadas, sendo visitadas para a coleta de frutos.
Essa agricultura de coivara é destinada ao consumo familiar e venda de produtos em pequena escala. Como o Sistema Agrícola do Rio Negro exige a transferência contínua do que é cultivado de uma roça para outra, estar inserido em uma rede de troca é fator essencial. A mandioca é o principal produto e sua importância não se restringe ao tubérculo comestível, mas a espécie que a planta representa, ou melhor, a variedade genética. Uma das grandes diferenças entre a agricultura ocidental e a elaborada pelos indígenas do rio Negro é que para eles a produção dessa diversidade é um bem coletivo que, necessariamente, deve circular. Daí a importância de fazer parte da rede de trocas entre as etnias envolvidas.
O patrimônio cultural e os sistemas agrícolas
Nos últimos anos tem crescido no Iphan as solicitações por registro de comidas como patrimônio cultural, o que revela a importância no cenário cultural brasileiro do cultivo da mandioca, do milho, do feijão e do amendoim, entre outros. Na gestão do patrimônio cultural, entender sistema agrícola significa compreender as dinâmicas de produção dos vários domínios da vida social, incluindo vivências e experiências históricas e os processos de construção de identidades, os saberes e as atividades que caracterizam os processos tradicionais. O sistema agrícola com base na mandioca vem sendo tratado no contexto das políticas culturais desde 2003, no Encontro Nacional sobre Agrobiodiversidade e Diversidade Cultural, da Conferência Nacional de Meio Ambiente. Já em 2005, a Revista do Patrimônio, do Iphan, foi totalmente dedicada a esse tema. No ano passado, o DPI/Iphan promoveu o seminário internacional Patrimônio Cultural e Sistema Agrícolas Locais.Ainda sobre os alimentos, vale ressaltar que já são registrados como Patrimônio Cultural do Brasil o Ofício das Baianas de Acarajé (2005) e o modo artesanal de fazer queijo de minas nas regiões do Serro, da Serra da Canastra e Salitre/Alto Paranaíba (2008). Este ano, no mês de julho, o Iphan recebeu a solicitação de registro do Ofício das Tacacazeiras na região norte do país. É neste contexto que o DPI é favorável ao registro do Sistema Agrícola Tradicional do Rio Negro para salvaguardar a prática e impedir que ela se perca em função de algumas ameaças, como a dificuldade da transmissão dos saberes às gerações futuras, principalmente no ambiente urbano, onde não há escolas indígenas diferenciadas, como é o caso dos municípios de Santa Isabel e Barcelos.
Entre as ações de salvaguarda para preservar os valores culturais e simbólicos associados ao sistema agrícola, como os mitos e as práticas de benzimento, por exemplo, está a mobilização de pesquisadores indígenas, urbanos e das comunidades para a pesquisa sobre o futuro do sistema agrícola regional. Desta forma será possível criar mecanismos de transmissão dos conhecimentos tradicionais. A medida possibilita também o aumento do número de comunidades a serem estudadas por pesquisadores indígenas, fortalecendo ainda mais o processo agrícola, alimentar e social.
O Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural
A reunião do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural acontece dias 4 e 5 novembro, no Salão Portinari, que fica no Palácio Gustavo Capanema, sede do Iphan no Rio de Janeiro. O Conselho que avalia os processos de tombamento e registro, presidido pelo presidente do Iphan, Luiz Fernando de Almeida, é formado por especialistas de diversas áreas, como cultura, turismo, arquitetura e arqueologia. Ao todo, são 22 conselheiros de instituições como Ministério do Turismo, Instituto dos Arquitetos do Brasil, Sociedade de Arqueologia Brasileira, Ministério da Educação, Sociedade Brasileira de Antropologia e Instituto Brasileiro de Museus – Ibram e da sociedade civil. Além do Sistema de Agricultura Tradicional do Rio Negro, também faz parte da pauta da reunião do Conselho Consultivo a proposta de registro como Patrimônio Cultural do Brasil o Ritual Yaokwa dos povos Enawene Nawe, no Mato Grosso. Os conselheiros avaliarão também a possibilidade de tombamento da paisagem natural de Santa Tereza, no Rio Grande do Sul, do sítio histórico de São Félix, na Bahia, do Monumento aos Mortos, na cidade do Rio de Janeiro, e do Encontro das Águas dos Rios Negro e Solimões, no Amazonas.
Entre as ações de salvaguarda para preservar os valores culturais e simbólicos associados ao sistema agrícola, como os mitos e as práticas de benzimento, por exemplo, está a mobilização de pesquisadores indígenas, urbanos e das comunidades para a pesquisa sobre o futuro do sistema agrícola regional. Desta forma será possível criar mecanismos de transmissão dos conhecimentos tradicionais. A medida possibilita também o aumento do número de comunidades a serem estudadas por pesquisadores indígenas, fortalecendo ainda mais o processo agrícola, alimentar e social.